O Simbolismo de António Carneiro

É no período parisiense, ao terminar a sua formação académica, que se situa a definição de valores do simbolismo na obra de António Carneiro que, se marcaram intensamente a obra que produziu na transição do século, haviam de se manter subtilmente em momentos posteriores da sua carreira, mas já sem a definição clara que atinge nesta fase.

As primeiras obras que suscitaram alusões ao simbolismo foram A Fonte do Bem (1900), A Vida (1899-1900), Ecce-homo (1901), Raquel (1902), Baptismo (1904) e Ceia (datável deste período). Refira-se ainda o trabalho de decoração do tecto da Sala de Leitura do Palácio da Associação Comercial do Porto (1907). Mas já em Jesus e a Lenda dos Martírios ( peça de final de curso), se assinalava a novidade de o pintor haver escolhido um tema com fortes incidências psicológicas, ao contrário dos seus colegas, afadigados no tratamento da mitologia.

O tríptico A Vida, exposto em 1901 na átrio da Misericórdia Portuense, mas elaborado e pensado em Paris e que resultou de uma série de desenhos preparatórios, bem como um estudo a óleo, hoje na Casa-Oficina António Carneiro, desenvolve-se em três painéis, referenciados com os «subtítulos» Esperança, Amor e Saudade, a que correspondem elementos figurativos simbólicos: uma figura feminina jovem, nua, acompanhada de uma criança, uma donzela e um cavaleiro numa «cavalgada romântica» e uma esfinge por detrás de um vulto feminino vestido de negro, ao lado de outra criança. A vegetação é rara, composta por pinheiros e ciprestes.

Se as personagens de A Vida não tinham lugar no imaginário da pintura portuguesa da época, se o simbolismo das idades da vida e do mundo, com toda a carga existencial e interrogativa que se lhe aponta, intrigaram o público de então, outro tanto aconteceu com uma peça de 1902 - Ecce-homo. Não só intrigou o público como os encomendadores - Misericórdia do Porto - pelo facto de a figura não ter a coroa de espinhos e a cana verde, facto que os levou a recusar a obra. Não fora o modo estranho de abordar a figura de Cristo e esta obra poderia inscrever-se na pintura de temática religiosa. Como sublinhou Manuel Laranjeira, não interessava a António Carneiro o tratamento mero e simples de um tema tão académico. O seu objectivo, apesar de cumprir um programa de encomenda, era outro: «Antes de mais, é preciso frisá-lo bem, o 'Cristo' não é uma tela religiosa, banhada de fé e espiritualidade cristãos. Tão puco é, como poderia supor-se num artista destes tempos de enfebrecido ateísmo, uma tela humana (...) Hoje o Cristo é apenas um símbolo humano (...) homem-ideia que é a figura central de um grande drama (...) despojada de todos os acessórios lendários, das alegorias místicas e depurada de todos os traços defeituosos que a realidade histórica parece atribuir a certo agitador da Galileia (...)» (Manuel Laranjeira). António Carneiro complicou-o ainda mais ao escolher para o rosto de Cristo a sua própria face. O Ecce-homo é um auto-retrato. Religião, símbolo e retrato, tríade complexa que se refletiu na recusa da peça. Torna-se assim uma forma de auto-conhecimento, presente em praticamente todos os ciclos do trabalho do pintor.

No que se refere a outros trabalhos deste periodo, como O Baptismo ou Raquel, foi principalmente a atmosfera melancólica que as encaminhou para a maneira simbolista, logo seguida de referências aos contornos fluidos a à quase flutuação das figuras. Mas na última fase da obra de António Carneiro regressarão alguns sinais do simbolismo, traços que ficaram deste núcleo inicial de obras. A responsabilidade pelo ressurgimento deste interesse acerca das grandes questões da humanidade cabe à vontade de ilustrar a Divina Comédia de Dante, vontade que ficaria frustrada. Só para o Inferno conseguiu realizar quarenta e dois esboços de ilustração, elaborados cerca de 1928, ficando o projecto incompleto. Os episódios escolhidos pelo artista têm um valor simbólico e denotam o seu interesse por problemas metafísicos.

Bibliografia:

  • Antonio Carneiro - O Universo no Olhar, Laura Castro
  • António Carneiro - Laura Castro (Ed. INAPA)

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